Dois bons dias
Sábado, 1 de Maio
Tudo fechado, excepto as lojinhas lá do meu bairro. Consegui comprar as flores na loja dos indianos a quem o Dia do Trabalhador nada diz. Na mercearia, todos os clientes elogiaram-me as flores fazendo perguntas difíceis “e como se chamam estas...?” E assumiram que eram para oferecer à minha mãe. Não os quis contrariar... Quando me vinha embora, o outro senhor veio até à porta e disse-me “Oferece-as enquanto as pessoas estão vivas”. E fiquei toda a tarde a matutar nesta frase.
A minha mãe faleceu em Setembro de 96. Foi uma morte lenta e dolorosa, cumprindo o diagnóstico do sr. doutor: “nove meses” disse ele. E assim foi. Em nove meses sofreu horrores provocados pela doença, isto quando não estava sobre os efeitos dos opiáceos que lhe afrouxavam as dores mas que a colocavam num nível acima de nós. A pairar.
Lá em casa nunca celebrámos os dias do pai, ou da mãe, ou do animal ou do feijão frade. Celebra-se o Natal e os aniversários. Ponto. O Natal porque é a desculpa para nos juntarmos. Os aniversários, porque é O dia da pessoa. (com excepção para o meu irmão mais velho que me telefona sempre no dia seguinte. Sempre. Mas ele até sabe que é a 17, mas telefona-me sempre depois.) E aí oferecemos prendas, e flores. Noutras ocasiões também.
O senhor da mercearia, na sua imensa sabedoria, tem toda a razão. Porque é que colocamos flores nos cemitérios? É algum ritual pagão? Os mortos saberão porventura que 7 palmos acima deles estão malmequeres amarelos ou rosas brancas?
Ofereça-as enquanto as pessoas estão vivas. Será o meu lema a partir de agora. Não mais levarei flores aos mortos.
Domingo, 2 de Maio
O Afonso empanca. Recusa-se a abrir o Internet Explorer e a guardar as traduções no Word. Ainda cheguei a pegar nele e fazer pontaria à parede do lado direito da sala. Mas depois, calmamente, recapitulei. Fechei-o apenas e confinei-o ao canto mais obscuro lá de casa. Ignorei-o.
Mas salvou-se o dia: o R decidiu dar-me mais uma hipótese e em meia hora fez Coimbra-Lisboa. Depois foi um domingo idílico. Coroado pelas conquilhas e caracóis e moelas na tasca além rio.
Ontem ofereceu-me um anel. Nada de oficial, apenas um anel giríssimo que vi à venda na Massimo Dutti. È grande e brilha.
Hoje é suposto termos uma conversa séria, porque as relações não podem ser feitas apenas de idas à praia e descobertas de tesouros e de momentos de paixão descontrolada. Não senhor, é necessário avaliarmos a relação e tomarmos decisões. E vai ser hoje. Eu até já lhe propus que assistíssemos ao jogo do FCP (cruzes credo!) ou então podíamos ir jogar bowling. Mas acho que ele não vai na conversa... temos que falar hoje.
Era o que eu dizia há dias a uma amiga minha: ele é a mulher desta relação. Muitas conversas, muitos planos, muitas certezas e muitas dúvidas. Eu já não me lembro como é que isso se faz... Mas adoro-o. E a ver vamos...
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